terça-feira, 31 de maio de 2011

Tarde de Maio

Já que estamos terminando o mês de maio, eis um dos poemas mais intensos da poesia brasileira, para o qual, pra quem se interessar, existe uma recitação também de igual intensidade da poetisa Adélia Prado ( http://www.youtube.com/watch?v=7kLj93xGLyE , neste vídeo há também um depoimento de Ferrira Gullar sobre outro poema ):

Como esses primitivos que carregam por toda parte o

maxilar inferior de seus mortos,

assim te levo comigo, tarde de maio,

quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,

outra chama, não perceptível, tão mais devastadora,

surdamente lavrava sob meus traços cômicos,

e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes

e condenadas, no solo ardente, porções de minh’alma

nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza

sem fruto.



Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,

colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.

Eu nada te peço a ti, tarde de maio,

senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,

sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de

converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém

que, precisamente, volve o rosto e passa...

Outono é a estação em que ocorrem tais crises,

e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,

já então espectrais sob o aveludado da casca,

trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres

com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro

fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,

sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.

E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito

lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.

Nem houve testemunha.



Nunca há testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.

Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?

Se morro de amor, todos o ignoram

e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.

O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;

não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória

das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,

perdida no ar, por que melhor se conserve,

uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

Carlos Drummond de Andrade


Entrelinhas


A vida é uma linha

Sobre uma linha

Sobre outra linha:

Calada e surda linha.

Visão


Sabe aquela tristeza infinda que se pinta ao rosto pálido vazio?
Imaculada virgem
Era a mágoa humana que se infundia
A minimamente inerte imagem do tempo ido, -
Tempo ido que a tudo mudou e sequer perguntou
Se acaso era dor a mais que uma flor despedaçada
- O que a gente sente agora,
Castrado de todo poder transmutável
Que se não pode ter a minha ânsia de tudo mudar;

Então mudo a direção do mundo que passa aqui
Dentro dessa visão que toda esperança desvia:
Vem do desejo inexorável de tudo velar,
Envenenar a vida de todos aqueles que não viam,
Ouviam as velas dos vates acesas a tudo chorar.

Astro Vagabundo


No meu lado não há luar
O meu lado não é de Lua
É sombra solta no ar espalhando
Pelo caminho o silêncio
Deste sino altar

E anuncia a continuidade
Daquela vasta solidão

Não é de Sol nem de Lua
É de um astro vagabundo qualquer
Sem o brilho falso da alegria
Que derramam do outro lado

No meu lado
Há um silêncio sombrio e terno
De um astro vagabundo

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Sensação

Onde estou eu agora
Que o som deste vago ofício
Me é tão claro e profundo?
Em que mar de plasma
Navego a buscar grãos,
Grãos de pétalas pungentes?

Meu coração é sensação louca
Em que me vejo esparramado,
E meu olhar é só da chuva
Que se vai me obedecendo:
Cai, cai dentro de mim!

E essa sombra que não cessa,
E esse lápis que trabalha,
Se é que há caminho,
Por onde me encaminham?

O tempo volve-me o rosto
À luz do sono,
E faz-se insônia então molhada.

Acalme-se Loucura,
É só o espaço de uma tempestade...

domingo, 19 de dezembro de 2010

Doce Luz

Há de vir o dito dia
Em
que serás compreendida, amada luz,
Tu e teu silêncio,
Tua
voz e teus cabelos,
Teu horizonte perdido.

Há de vir o dia
Em
que, finalmente,
Banharás a mim e a meu povo
De lua e de
estrelas:
Tua ínfima demonstração de amor.

Há de vir o dia
Em
que esta canção
Te levará em revoada
Aos montes ressonantes dos
teus sonhos.

Há de vir o dia, enfim,
Em que teu sonho,
reiterado,
Fechará toda a sombra que há no asfalto;
E então,
recobrado o fôlego,
O mundo irá respirar calmo
Do sopro da tua
luz, da tua doce luz...

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Noturno

Há um tempo em que
As
palavras já não dizem nada
E as confissões se dissolvem no vento;
Há um tempo em que
Sequer
o olhar da natureza
Traduz as espectrais
esperanças de viver;
Há um tempo em que
O mundo, os antepassados,
A ternura, não importam mais:
Estradas e fronteiras
Não nos levam a
lugar algum
E o amor se esconde
Detrás do horizonte,
Sempre
intangível,
Sempre a mesma coisa,
Detrás de outra coisa.
Há um tempo em que
Só resta existir, nada mais,
Sem nenhum mistério de
noites,
E sem esse aperto no coração.